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Histórico sobre a caminhada
da
Paróquia de Campo Alegre de Lourdes
Autor Roberto Malvezzi - Gogó
Opção Pelos Pobres
A partir de 1969, com o Concílio de Medellin, a Igreja da América
Latina, oficialmente, faz sua "opção pelos pobres". Na prática,
apenas uma parcela da Igreja iria fazer sua a causa dos mais pobres. Essa
opção chegou ao sertão do Nordeste Brasileiro. Na
diocese de Juazeiro, Bahia, essa opção vai ganhar uma forma
mais radical com a chegada do bispo D. José Rodrigues, em 1975.
Sua chegada coincidiu com a construção da barragem de Sobradinho,
deslocando 72 mil pessoas de suas casas da forma mais irresponsável
possível. Estávamos em plena ditadura militar e a região
era considerada área de segurança nacional. Campo Alegre
de Lourdes foi o único município da diocese que não
sofreu nenhum impacto da barragem, mas foi um dos primeiros lugares onde
a opção pelos pobres vai surgir de forma organizada.
Campo Alegre de Lourdes
Começa
Em Campo Alegre de Lurdes torna-se vigário o Pe. Edmundo.
Com ele começa a organização das comunidades em um
outro patamar evangélico, isto é, na perspectiva da fraternidade,
solidariedade e cooperação mútua. Inicia cursos
para treinamento de líderes, agentes de saúde, catequistas,
etc. Ao mesmo tempo, começa uma luta pela água, ainda que
de forma dispersa e sem técnicas apropriadas para garantir a água
para consumo humano.
Essa caminhada prossegue mesmo com a saída do Pe. Edmundo. Logo
em seguida assume o Pe. Noé Aggeler (1972 -1975). Por um
breve período assume o Pe. José Pedro do Nascimento. Posteriormente,
por vários anos, a paróquia estará sem padre. Assume
a liderança dos trabalhos a congregação das Irmãs
Cabrini. Uma equipe de Irmãs irá dar continuidade à
formação das comunidades. Para facilitar o trabalho, organizam
"campanhas de alfabetização" com voluntários vindos
do sul durante o mês de janeiro de cada ano. Assim, durante vários
anos as comunidades vão hospedar esses voluntários em suas
casas. Logo o passo da alfabetização é superado por
uma formação mais ampla da comunidade, inclusive na linha
sindical e política.
Formação de novos partidos
Através dessas campanhas, muitos voluntários conhecem
a região e decidem permanecer nela, principalmente a partir de 1980.
Vão morar em Campo Alegre e colaboram para intensificar a formação
das comunidades, política e sindical. É um tempo de muito
conflito com as lideranças locais, acostumadas a manter o povo sob
o véu da ignorância, clientelismo político e dependência
de favores. Ao mesmo tempo o Brasil estava saindo do regime militar
e recuperava uma relativa liberdade política, com a formação
de novos partidos. Entre eles um era extremamente original, o Partido dos
Trabalhadores ( PT ) porque, contrariando a cultura política brasileira,
o PT nascera de baixo para cima, no meio dos trabalhadores das áreas
mais industrializadas do país. O PT encontrou seu ninho no meio
rural do sertão nordestino, justamente em Campo Alegre de Lurdes.
Foi o primeiro diretório do partido a se constituir formalmente
na Bahia. Uma vez organizado, o partido começa disputar eleições
em Campo Alegre, constituindo-se numa novidade absolutamente inédita
na região.
Comunidades Eclesiais de Base
A formação das Comunidades Eclesiais de Base foi o fundamento
de toda luta pela vida no município. Foi delas que brotou toda espécie
de iniciativa popular e, principalmente, as lideranças populares
que iriam conduzir essas iniciativas. Elas se constituíram
como o primeiro núcleo organizativo do município,
centradas na leitura da palavra, na idéia da partilha e da "luta".
Era um "novo modo de ser Igreja" que surgia, mas era também
a sementeira de outras formas de organização. Delas vieram
as outras organizações sociais, como o partido, o sindicato
e as associações. As comunidades permitiram a conquista
da cidadania, antes radicalmente negada. Cidadania aqui entendida no
seu fundamento elementar que é o de "participar da vida da cidade".
Antes os trabalhadores sequer podiam circular nos ambientes urbanos porque
eram ameaçados pelos políticos locais. A presença
nos centros urbanos só era possível em forma de massa, mostrando
força. A conquista da cidadania plena ainda é uma busca,
mas já foram dados passos importantíssimos, como o direito
de ir e vir entre a cidade e o campo.
Luta Pela Terra
A luta pela terra foi uma das principais atividades dos trabalhadores nos
primeiros anos de suas organizações. Foi o único modo
de preservar espaços rurais para os trabalhadores. A maior parte
das terras dessa região são consideradas devolutas, isto
é, pertencentes ao Estado, mesmo estando ocupadas há séculos
por famílias do povo. Essa realidade estranha só é
possível de ser entendida se voltarmos para trás na história
do Brasil, 1850, quando surgiu a primeira lei de Terras do Brasil.
Com essa lei, como as Sesmarias haviam sido extintas em 1822 com a proclamação
da Independência, havia um vácuo sobre a propriedade da terra
no Brasil. Com essa lei, o governo imperial determina que as terras,
daquela data em diante, só poderiam ser adquiridas mediante a
compra e venda. Com isso, as terras que não fossem registradas,
seriam consideradas do Estado. Como os pobres não tinham dinheiro
para registrar suas ocupações, a maior parte delas ficou
considerada como propriedade do Estado. Ainda é assim nessa região
do Brasil.
Essa situação, obviamente, favorece todo tipo de disputa
sobre a terra. Prevalece quem tem poder e dinheiro. Para os pobres,
considerados posseiros, restou a resistência. Primeiro resistindo
às "grilagens". "Grilagem" vem de grilo, um inseto que devora as
plantações. Nesse caso quer significar invasões violentas
dos poderosos sobres as ocupações dos pequenos, devorando
suas posses e propriedades. Depois, conseguindo incluir na constituição
baiana de 88 o regime fundiário de "fundo de pasto", isto é,
áreas comprovadamente usadas pela comunidade podem ser demarcadas
em nome de uma associação que assuma a propriedade da terra.
Essa brecha legal abriu uma nova etapa da luta em Campo Alegre. Hoje já
são .......associações de fundo de pasto e outras
que estão em formação. Sem a terra, é impossível
qualquer outro tipo de luta.
Sindicato dosTrabalhadores Rurais
Uma das organizações mais visadas pelos trabalhadores era
a conquista da direção do sindicato dos trabalhadores
rurais. Por uma dessas aberrações da vida política
brasileira, os sindicatos tinham sido criados pelo Estado por volta de
1970 para esvaziar as Ligas Camponesas, independentes e consideradas revolucionárias
pelo regime militar. A direção desses sindicatos, contudo,
era formada pelos próprios chefes políticos locais, constituindo-se
em verdadeiros departamentos das prefeituras. Não era fácil
vencer eleições viciadas, com corrupção protegida
pela justiça. Logo na segunda tentativa, contudo, os trabalhadores
vencem as eleições. Era a primeira organização
formalmente reconhecida que os trabalhadores passavam a controlar,
não só em Campo Alegre, mas em toda a região. Era
um exemplo para outros. Na sequência de Campo Alegre, vieram Remanso,
Pilão Arcado e Curaçá. Foi impossível a conquista
em Juazeiro, Sento Sé e Casa Nova devido aos esquemas das oligarquias
locais.
A experiência na direção do sindicato foi enriquecedora
para os trabalhadores, tanto nos aspectos positivos como negativos.
Era a primeira administração por parte dos trabalhadores.
Logo colocariam em ordem, e a serviço dos trabalhadores, um organismo
que, de fato, trabalhava contra seus interesses e a favor dos políticos
locais. As primeiras administrações foram extremamente positivas.
Aos poucos, contudo, fizeram a experiência dos limites do órgão
e como o poder, por menor que seja, mexe também com a cabeça
dos trabalhadores. Foi uma experiência dolorosa recuperar a credibilidade
do sindicato quando alguns diretores tiveram que ser afastados por má
gestão do que era dos próprios trabalhadores. Mas conseguiram
recuperar a direção de forma ética, restaurar a credibilidade
e, hoje, o sindicato é um dos principais instrumentos dos trabalhadores
na luta pela terra e pela água.
Luta pela Água
A luta pela água, de forma mais específica, surgiu por volta
de 1995, quando o STR de Campo Alegre, decidiu estabelecer uma luta
orgânica pela água, não mais de forma dispersa e pontual.
O trabalho de algumas ONGs na região, principalmente o INSTITUTO
DA PEQUENA AGRICULTURA APROPRIADA ( IRPAA ), já demonstrara em cursos
que era possível contar com técnicas simples e eficientes
para armazenamento de água para o consumo humano, consumo
dos animais e água de emergência, tudo baseado na captação
da água de chuva. Apoiados pela Comissão Pastoral da
Terra e Paróquia, articulados pelo Sindicato, os trabalhadores elaboram
um sofisticado Plano de Água municipal, envolvendo uma pesquisa
capilar de toda espécie de necessidade de água, as obras
adequadas para armazenar essa água, a locação das
obras e o orçamento correspondente de cada obra. Um trabalho único
em todo o Nordeste brasileiro. Iniciaram uma luta política para
transformar em política pública aquilo que era uma iniciativa
popular. O projeto, várias vezes apresentado na Câmara de
Vereadores, jamais foi aprovado pela Câmara, com os vereadores
sendo orientados pelo prefeito e pelo deputado estadual da região
para que não aprovassem o projeto. Os trabalhadores não
se intimidaram e iniciaram a construção das obras – principalmente
a de cisternas familiares para consumo humano – com dinheiro advindo
do exterior, principalmente cristãos da Alemanha. Já
foram construídas mais de 1900 cisternas, aproximadamente 25% das
cisternas necessárias. O objetivo é dotar cada família
de uma cisterna. Essa luta se afina com a luta diocesana pela água
– até 2004 nenhuma família sem água e sem comida –
e com a celebração do ano jubilar em 2000, principalmente
o resgate das dívidas sociais. O plano de água teve um efeito
multiplicador extraordinário, principalmente a construção
das cisternas, e está se transformando numa referência nacional.
Os planos, contudo, como envolvem todas as necessidades de água,
exigem também a luta por outras formas de captação
de água para enfrentar os períodos naturais de estiagem.
Enfim, uma luta apenas iniciada.
O "modus vivendi" no Sertão
A proposta vai além da luta pela água. Trata-se de reinventar
o "modus vivendi" no sertão. É toda uma adaptação
mais adequada do ser humano ao meio ambiente circundante. Envolve a captação
de água, novos tipos de pastagens, modo diferente de lidar com a
agricultura, de cultivar os animais, enfim, é uma toda uma mudança
que passa pelo cultural, pelas raízes mais profundas do povo. Hoje,
além da paróquia, das pastorais sociais, as organizações
populares contam com o apoio de ONGs que trabalham especificamente essas
questões, como o IRPAA, já citado, e o SASOP. Esse
último vem trabalhando a agroecologia, quintais produtivos e a apicultura.
Situação dramática
Sem dúvida a situação do Nordeste brasileiro mantém-se
dramática. Campo Alegre não foge à regra. As mudanças
são lentas e quase imperceptíveis. Preferimos, contudo, manter
o espírito evangélico do compromisso, que prefere
manter acesa a vela que queima, que aceitar a escuridão da passividade.
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